quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Quando se cruza uma linha

Constantemente ouvimos falar de casos de atletas que são flagrados em exames de controle de doping, cuja presença de substâncias proibidas foi detectada em seu organismo.

Quando estes casos são detectados em competições internacionais, com atletas estrangeiros e em modalidades de grande retorno financeiro como o futebol, o tênis ou os ciclistas do pró tour estes casos já nos chocam. Eles nos fazem pensar sobre as compensações financeiras da vitória, superando os riscos de ser pego, sobre o caminho que o esporte de alto rendimento está seguindo, sobre se existe algum atleta de elite ainda limpo.

Entretanto, quando sabemos de um caso mais próximo, dentro do nosso esporte, com um atleta que conhecemos, contra quem já podemos ter disputado uma competição a questão se torna muito mais pessoal. Nos sentimos traídos, enganados, trapaceados. A questão do doping sai de uma perspectiva generalista abstrata, de fenômeno do esporte, e assume um caráter concreto. Isto nos faz refletir sobre os porquês deste fato, os motivos, as formas e todos os fatores que fizeram estes atletas se utilizarem de tais substâncias, na tentativa de encontrar alguma explicação que possa nos trazer alguma segurança dentro do contexto esportivo em que vivemos. Segurança de que os infratores serão pegos, segurança de que o esporte que praticamos é limpo e até a segurança de que posso competir limpo e vencer e de que não seremos um dia parte também deste processo.

Mas até por este caráter de repúdio e de busca de segurança, uma reflexão responsável é necessária para que não caiamos em armadilhas. Isto porque, assim como temos (nós como sociedade) a tendência a reverenciar nossos ídolos, dotando suas figuras de todas as virtudes e buscando absorve-las (as virtudes) de volta, no momento em que os assumimos como exemplo, também temos a tendência de atribuir aos “vilões”, todos os vícios da sociedade. Desta forma conquistamos a segurança de poder separar os indivíduos entre bons e maus, nos sentindo virtuosos por imitar os ídolos e projetando tudo o que não conseguimos aceitar como parte da realidade, como algo que está presente no meio de nós, em indivíduos que, por alguma falha maior ou menor, de princípio, caráter ou conduta, acabam por personificar este papel de vilão, ficando então indissociados do fato em si.

Um atleta que desrespeita uma regra “tabu” como o doping, passa a ser considerado não apenas um mau atleta, que desrespeitou uma regra, mas alguém sem caráter, dissimulado, um ser humano ruim.

Por isso precisamos jogar um pouco mais de luz sobre o uso de substâncias proibidas, ou doping, para que então possamos começar a compreender os reais motivos que levam um atleta, profissional e amador, a se utilizar de tais métodos, para que então possamos pensar em educação, controle e responsabilização.

Quando falamos em doping e atletas se dopando, precisamos pensar em diversos fatores: Existe algum perfil especial de atleta que se dopa? Quais os motivos que levam um atleta a se dopar? Existe mais de um motivo? Entre outros que vão nos responder os porquês e os como da situação.

Existem diversa discussões acerca dos perigos e ameaças do doping. Tanto do ponto de vista médico como do ponto de vista filosófico, quando se sai do senso comum de condenação, revolta e recusa em se discutir o assunto abertamente (ao meu ver, o grande motivo pelo qual avançamos muito pouco em termos de educação anti-doping), ainda não existe um consenso sobre perigos-benefícios e o conceito de aceitável-inaceitável, quando se discute sua liberação. Entretanto existe um consenso geral. De que uma vez que existe uma regra formal que proíbe o uso de métodos e substâncias específicas, o seu uso por parte de um atleta configura uma infração a esta regra, ofensa ao fair play e portanto trapaça.

Este é o princípio de qualquer regra, existe um código específico e a infração a esta regra, embora traga ganhos para o infrator, deverá receber uma punição adequada para que estes ganhos não compensem as perdas consequentes. Mas infelizmente como toda regra, muitas vezes os atletas testam os limites na busca por algum benefício, de não serem pegos, do ganho ser maior que a perda ou de simplesmente pensarem apenas no ganho ignorando as perdas. Isto acontece desde um jogador de linha que arrisca ser expulso ao defender com a mão um gol certo no futebol, até um atleta que se utiliza de um método proibido para estar em condições fisiológicas melhores que seus adversários correndo o risco de ser suspenso por dois anos. E esta consciência entre perdas e ganhos que precisamos avaliar.

Existem diferentes motivos que levam o atleta a se dopar e este motivos tem a ver com sua intenção, seu grau de conhecimento, seus recursos, seu ego, sua disciplina, seu fair play e sua força de caráter. Cada ponto atrairá ou impulsionará o indivíduo em direção a infração de uma forma específica, sendo causa e determinando o porquê deste comportamento. Por isso não podemos generalizar os casos e culpabilizar os atletas da mesma forma, embora a responsabilidade pelo uso e o fato em si devam ser tratados igualmente no momento da punição, uma vez que o teste julga a presença da substância e não a intenção do atleta. Nem sempre os atletas estão buscando o caminho mais fácil ou uma vantagem desleal, mas o resultado é o mesmo.

Da ingenuidade:
Embora muito alegada pelos atletas quando pegos, que afirmam não saber como o resultado positivo foi encontrado, culpando suplementos, chás, e medicamentos naturais, esta vertente é realmente muito pequena, mas precisa ser considerada. Ela ocorre principalmente em atletas mais simples, que não entendem de suplementação, de substâncias proibidas, de responsabilidades. São pessoas humildes, que seguem a risca tudo o que treinadores, médicos e nutricionistas, do alto de sua suposta autoridade, lhes prescrevem. Como atletas, muitas vezes eles tem consciência de que o doping é errado. Talvez se lhes fosse explicado que iriam tomar substâncias proibidas possivelmente se recusassem. Mas o que ocorre é diferente, normalmente as substâncias lhes são dadas alegando serem vitaminas, suplementos normais, sem risco e sem restrição. Através de sua ingenuidade são levados a se doparem e normalmente quando pegos são direta e unicamente responsabilizados e abandonados por aqueles que lhes fizeram a prescrição.

Da Irresponsabilidade:

O principal objetivo desta vertente é a de diferenciá-la da ingenuidade. Neste caso os atletas não são figuras humildes, não são influenciados por terceiros inescrupulosos. Eles simplesmente não se dão conta da responsabilidade que têm de manter seu corpo limpo. Tomam remédios sem prescrição, não se preocupam com a procedência de seus suplementos, desconhecem a lista de substâncias proibidas, não leem rótulos, acham que por serem naturais, certos produtos não serão considerados doping e acabam se expondo a riscos desnecessários durante sua carreira esportiva, muitas vezes sendo surpreendidos por resultados positivos. Neste caso a intenção do uso ainda não está presente, mas a irresponsabilidade já se encontra acima da ingenuidade.
Da sensação de inferioridade:

Nesta vertente a intenção já começa a aparecer, ainda não no sentido do levar vantagem ou de trapacear com convicção, mas o aleta já sabe exatamente o que está fazendo. Neste caso o atleta se dopa não por querer levar vantagem sobre os outros, mas ele acredita que ao se dopar está simplesmente diminuindo a diferença entre ele e os outros atletas. Esta vertente é bastante polêmica, pois é muito contestada por médicos e atletas. Nela se concentram os casos de atletas que se utilizam de substancias proibidas (autorizadas ou não por meio das isenções de uso terapêutico) por se considerarem física ou fisiologicamente inferiores aos atletas limpos. Atletas com bronquite, capacidade pulmonar reduzida, déficits hormonais e outras doenças são os mais comuns. Embora o esporte competitivo seja sobre diferenças físicas, técnicas, genéticas e de capacidades, estes atletas julgam que a compensação de suas deficiências é mais justa do que a compensação de outras deficiências de outros atletas em relação a eles.
Outro ponto desta vertente são os atletas que se convencem de que todos os atletas se utilizam do doping, de que ele atingiu todos os limites possíveis do ser humano em termos de dedicação, recursos e treinamento e que todos aqueles que ganham dele é porque estão dopados. Aí mora um grande perigo, pois é fácil dar um passo a frente e justificar o início do uso de uma substância ou método proibido dizendo que apenas está diminuindo a diferença, se dopando como todos para que a competição seja mais justa. Talvez este atleta seja o mais propenso a começar a se utilizar do doping, pois a sensação de injustiça prévia muitas vezes confunde e distorce o processo racional e a manutenção dos valores, o atleta vai sempre responsabilizar os outro pela sua conduta e assim se esquivar de sua própria auto condenação.

Da falta de opção:

Neste caso estão os atletas desesperados. Eles vivem do esporte, são atletas (no que diz respeito a constituição de sua identidade), pagam suas contas com a premiação e os patrocínios e dependem de uma convocação, de um índice ou de um resultado importante que julgam estar fora de seu alcance dentro das condições normais. O atleta sente sua vida ameaçada e enxerga no doping uma última oportunidade de conquistar aquilo que tanto sonhou. Ser pego é uma ameaça, mas não conseguir o resultado também o é. Em seu modo de pensar, estar limpo e não conquistar o objetivo de nada lhe valerá, pois irá ter de abandonar o esporte. Caso seja pego, terá, da mesma forma, que abandonar o esporte. Mas em sua lógica ele costuma ignorar todo o prejuízo da segunda opção e se concentra em uma terceira, a de conquistar o resultado e não ser pego. Para ele os fins justificarão os meios, e ele ainda pode garantir que só tomará para aquela competição, que depois as coisas ficarão mais tranquilas e ele irá parar. Mas não é isso que acontece e sempre que a corda apertar ele vai recorrer a esta saída. Normalmente esta situação ocorre com os atletas profissionais, cuja identidade e a vida dependem de sua prática e de suas vitórias. Mas com a cultura do imediatismo, da conquista e da necessidade de alcançar o resultado aqui e agora, muitas vezes vemos atletas amadores que buscam um título, um índice ou uma vaga em um torneio importante acabam se arriscando nesta “roleta russa”, que muitas vezes oferece ainda menos risco, pois muito raramente em alguma competição, mesmo em mundiais, os amadores são testados.

Da vantagem:

Por último chegamos ao conceito da vantagem pura. Aqui encontramos o atleta realmente inescrupuloso, que quer levar vantagem sobre seus adversários, que busca o caminho mais fácil, que muitas vezes nem tão mais fácil é, pois a substância permite ao atleta treinar mais horas e sofrer durante mais tempo. Este atleta sabe o que está fazendo e até espera que ninguém mais o faça, para que sua vantagem seja ainda maior. Ele busca a glória, a superação, o reconhecimento, a reverência. Seu ego e seu orgulho são inflados e suas motivações na maioria das vezes são extrínsecas: prêmios, medalhas, reconhecimento. Não existe inocência aqui e sim um a grande sensação de impunidade, de que nunca vai ser pego, de que seu esquema é melhor, de que ele é mais esperto que o sistema. E é justamente este orgulho que acaba criando falhas em seu método e fazendo com que ele seja pego. Muitas vezes frente a um resultado positivo alega ingenuidade, inocência e culpa a todo o sistema, entidades, adversários preferindo acreditar que foi vítima a assumir, não que infringiu uma regra, mas que seu sistema de infração não foi bom o suficiente.
Com certeza existem mais vertentes do que estas aqui apresentadas, e cada uma delas não ocorre de forma estanque. Em um caso de doping talvez possamos identificar um fator principal, mas ele nunca ocorre sozinho. Muitas vezes ele é fruto de um processo em que o atleta inicia por um motivo, em uma determinada situação, com uma responsabilidade específica e com o tempo o contexto vai se modificando e o atleta vai encontrando motivos e justificativas para continuar. E quando é pego e lhe perguntam, muitas vezes não consegue nem sequer justificar o porquê para si mesmo.

Mas pelo que podemos ver nestes diversos perfis, existe um fator em comum presente nos diferentes casos. Este fator é a busca por algum método ergogênico. Do mais inocente, ao mais inescrupuloso, todos entram nessa partindo de um princípio: A busca por algo que melhore sua performance, nas competições ou nos treinos. Nem sempre quem se utiliza de suplementos e outros métodos legais de treinamento e preparação será candidato ao uso de substâncias proibidas, mas quem se utiliza delas, com certeza passou por todos os métodos, substâncias e materiais legais antes de se arriscar no proibido. Pois doping exige conhecimento, teste, busca. E durante a busca os limites do que faz bem ou mal, do que ajuda ou não, do que é natural, justo ou aceitável vão ficando tênues se não estivermos firmes nos valores de justiça, fair play e caráter. Precisamos ter clareza do conceito de que existe uma regra e que a simples e mais branda infração desta já se constitui como infração. E toda a infração deve ser punida.

Por isso, enquanto não pararmos para discutir abertamente a questão, e não buscarmos compreender os motivos e as causas que levam diferentes atletas, de diferentes modalidades, em diferentes momentos a se doparem, não teremos a capacidade de desenvolver programas específicos de combate ao doping que possam convencer os atletas, responsáveis últimos pelo uso de qualquer substância, de que os valores éticos e o respeito as regras do e no esporte devem ser mantidos